Contra a “Política de Verdade”




Publicado em: Esquerda.net / Opinião, 5 de Julho de 2009

O sítio da internet de Manuela Ferreira Leite (MFL) tem o interessante título “Política de Verdade” (ver: www.politicadeverdade.com), nome semelhante ao do fórum de discussão que o PSD tem vindo a realizar, a que chamou “Portugal de Verdade”. É, pois, sob o signo da verdade que se apresentam as propostas políticas daquele partido em 2009. É isso que suscita este comentário, que não será de análise das propostas apresentadas nem, muito menos, de querela partidária, mas que se focará em alguns aspectos da complexa e velha questão da relação da política com a verdade.

A referência à verdade como caracterização de uma política não é uma originalidade do PSD. Lembro-me do slogan de um antigo jornal diário do PCP: “a verdade a que temos direito”. Lembro-me do jornal publicado no PREC por uma das correntes políticas que deram origem a uma das correntes políticas que deram origem ao Bloco de Esquerda, que se intitulava simples e peremptoriamente “A Verdade”. Isto já para não falar no Pravda, o exemplo mais conhecido. Uma simples pesquisa poderá recensear inúmeros outros exemplos. Trata-se, pois, de uma questão de alguma forma transversal ao espectro político.

Se a vox populi não se cansa de repetir que os políticos não falam verdade, não será adequado, para o combate aos preconceitos populistas, que os políticos reforcem por todos os meios a sua identificação com a verdade? Sim, mas...


Os terrenos da verdade

[ Passamos ao lado da questão filosófica das teorias e concepções de verdade, e mesmo de saber se ela é definível. Faremos apenas uma utilização básica, corrente e relativamente indefinida do termo, suficiente para o assunto que queremos tratar e para o âmbito e dimensão deste texto.]

A verdade é fundamental em política. Sobre os factos, os políticos devem dizer a verdade e lutar por ela (apesar de, mesmo no que se refere aos factos, a verdade não ser simples de determinar, nem frequentemente ser independente da interpretação dos mesmos). Uma política que se baseie na negação de factos é sempre perigosa. Também sobre as suas intenções, os políticos podem e devem dizer a verdade, porque as suas intenções sobre o futuro existem realmente no presente das suas mentes.

Mas, a essência da actividade política são as propostas e as decisões que tentam influenciar a evolução da realidade num determinado sentido. O que está feito, está feito; fica entregue aos analistas, aos comentadores, aos historiadores e ao julgamento colectivo. A política é, no entanto, a permanente decisão sobre o futuro. Que se discute naquele indefinido lugar sem espessura, entre o passado (o que já é ou já foi) e o futuro (o que poderá ou não vir a ser), lugar de limites pouco claros a que chamamos, por mera convenção, presente.

E é precisamente porque tratam do futuro, sem decorrerem como necessidades lógicas ou consequências inevitáveis das situações e factos precedentes, que as propostas políticas não podem ser verdadeiras nem falsas. Não há factos no futuro. Há factos possíveis, contingentes, potenciais, sempre incertos. A frase “nas últimas férias fomos para a praia” pode ser verdadeira ou falsa. Mas, à frase “proponho que nas próximas férias vamos para a praia” não é aplicável qualquer classificação em termos de valor de verdade. O mesmo se passa com as propostas e programas políticos.

Se sobre os factos, os políticos podem dizer verdades ou mentiras, sobre a interpretação dos factos podem fazer análises melhores ou piores, mais ou menos lúcidas, mais ou menos úteis, mas não verdadeiras ou falsas. E sobre o futuro, o que os políticos realmente fazem é apresentar propostas e emitir opiniões. Nem falam verdade, nem podem mentir. É por isso que a política, no que tem de essencial – as propostas – nunca poderá ser uma “política de verdade”. Pode ser muita coisa: realista ou irrealista, tímida ou ousada, séria ou demagógica, popular ou elitista, conservadora ou progressista, social ou anti-social, etc., de acordo com a visão de quem a qualifica, mas nunca será verdadeira nem falsa.

Afirmar a verdade em terrenos onde ela não se aplica, nem pode existir, pode ser tão grave como negar a verdade onde ela é indispensável. A falta deliberada à verdade sobre os factos (mesmo quando apresentada falsamente como direito à livre opinião) corrói a democracia. Mas pretender ser detentor da verdade política, num domínio que é exclusivo da opinião, contradiz a própria essência da democracia - a escolha livre entre vários caminhos possíveis -, negando a justificação última da sua necessidade. No campo dos factos, o desprezo pela verdade é apanágio dos tiranos. No campo das opiniões, é a pretensão de verdade que caracteriza a sua atitude.


A verdade é que...

No entanto, se repararmos bem, esta tentativa de identificação da nossa opinião com a verdade é mais frequente do que pode parecer. Na retórica política, é muito usual a apresentação da nossa opinião, por contraste com as opiniões dos outros, da seguinte forma: A diz x, B afirma y, mas a verdade é que z. Z é (apenas) a nossa legítima opinião, mas nós gostamos de a apresentar como “a verdade”. Os outros têm opinião, nós expressamos a verdade. Todos já certamente usámos este artefacto retórico “a verdade é que” em debates de opiniões, quando o seu uso legítimo se deveria limitar àquelas discussões de factos ou assuntos sobre os quais se podem fazer afirmações verdadeiras ou falsas (e mesmo aí, não passaria de uma redundância, já que ao afirmarmos algo, estamos implicitamente a afirmá-lo como verdadeiro, mas a retórica permite essas liberdades).

O oposto de uma afirmação verdadeira é uma afirmação falsa, não é uma opinião. À verdade sobre os factos opõe-se a falsidade sobre eles e, em regra, esta oposição é decidível objectivamente (apesar da subjectividade das escolhas respeitantes à interpretação). A uma opinião política deve opor-se outra opinião política e esta oposição, contrariamente à anterior, não é decidível objectivamente, tem de ser objecto de decisão democrática. Pretender distorcer a consistência interna destes pares de opostos afirmando que os outros têm opiniões enquanto nós temos a verdade, para além de revelar ou uma incompreensão do fenómeno político, ou uma desonestidade intelectual, nega a própria razão de ser da democracia. É precisamente porque as opções políticas alternativas não são decidíveis por exercício racional objectivo e neutro (decidindo apenas na base do que seria a sua qualidade), que o método democrático de escolha (que tem uma base essencialmente quantitativa) é indispensável nas nossas sociedades.

Se fosse possível existir uma “política de verdade”, ela seria de facto a única a poder classificar-se assim (seria tão única como a verdade) e as restantes políticas alternativas seriam necessariamente políticas do erro ou da falsidade. Ora, diz o povo que a verdade não se discute. Postos perante uma política de verdade, nada justificaria uma discussão e muito menos uma votação com outras propostas apresentadas em pé de igualdade. A discussão livre, a persuasão, a escolha não sobrevivem no mundo das verdades absolutas. A democracia também não.


“Mete-se tudo na ordem...”

Para acabar, vejamos um outro caso recente, que envolveu um problema do mesmo tipo: a célebre intervenção em que MFL falou da suspensão da democracia.

Comecemos pela transcrição exacta das suas palavras: “Quando não se está em democracia é outra conversa: eu digo como é que é e faz-se! E até não sei se, a certa altura, não é bom haver seis meses sem democracia; mete-se tudo na ordem e depois então venha a democracia.”

Para além dos imensos comentários críticos que esta afirmação já provocou, polémica que não iremos recuperar aqui, há uma questão que merece atenção especial, no âmbito da problemática sobre que se debruça este texto. É a questão de saber como seria definida a forma e o conteúdo político do acto de “meter tudo na ordem” nesses seis meses sem democracia.

O que está pressuposto naquela afirmação é que haveria apenas uma maneira de o fazer, óbvia e indiscutível, uma forma correcta, verdadeira, de resolver o problema da falta de ordem. Ou seja, sugere-se que há certas decisões e certas políticas que estão para além da contingência das opções entre várias soluções possíveis, que são, portanto, isentas de contestação atendível.

É um clássico destas teorias deixar por responder a questão de saber quem é que vai definir esse pensamento único e dirigir a execução dessa política única. Mas, normalmente, o emissor faz com que a sua mensagem traga sempre essa resposta implícita, que os apoiantes e seguidores da teoria incorporam de forma automática, como evidência inquestionável: eu digo como é que é e faz-se!”

Mesmo que, por absurdíssima hipótese, um democrata pudesse estar de acordo com a suspensão da democracia por seis meses para pôr a casa em ordem, haveria sempre a necessidade de antes ter decidido como o fazer. O que era em si uma opção política, baseada numa escolha entre várias prováveis opções possíveis, nenhuma das quais gozando do estatuto de opção “verdadeira”; logo, só uma decisão democrática poderia fazer essa escolha.

Mas não é isto que está subjacente à frase de MFL; esta frase (talvez apenas um momento infeliz e não uma proposta assumida) tem contudo uma profunda e preocupante coerência com a opção por uma “Política de Verdade”. É a política de verdade levada à sua expressão mais extrema.

1 comentário:

António Cruz Mendes disse...

Caro Renato Soeiro:

Sou um seguidor atento e interessado do seu blogue, com o qual tenho aprendido muito. E subscrevo quase inteiramente as ideias deste texto. Contudo, penso poder fazer-se uma distinção entre propostas políticas que alguém pretende aplicar, mesmo correndo o risco de serem impopulares, e de outras que se fazem com o simples intuito de captar votos. As de Manuela Ferreira Leite estão entre as primeiras. E como discordo delas, julgo que nisso reside o seu problema e, ao mesmo tempo, a sua "verdade". Facilmente vejo nelas uma política de direita, mas já me é mais difícil classificá-las como demagógicas e populistas. E, neste sentido, "mentirosas".