Directiva Bolkestein

uma questão central da luta de classes em curso na Europa

Publicada em: www.be-global.org em 2005-11-22

1. Situação do processo legislativo

A proposta de Directiva relativa aos Serviços no Mercado Interno está a chegar a uma fase decisiva, embora ainda não final, do longo percurso que caracteriza a tomada de decisão das instituições europeias. Foi votada hoje mesmo no Parlamento Europeu (PE) no âmbito da Comissão parlamentar do Mercado Interno (IMCO) com uma retumbante vitória da direita, apesar das muitas alterações que sofreu, de um modo geral no sentido de atenuar os aspectos mais chocantes. “Agora as empresas terão mais liberdade para exercer os seus direitos” disse satisfeito, no fim da votação, o deputado conservador britânico que liderou o Partido Popular Europeu (PPE-DE) nesta questão, resumindo bem o sentido da decisão. A directiva deverá agora ser agendada para uma votação no plenário do PE no próximo mês de Janeiro de 2006.

Recordemos (em termos muito simplificados) que entre as três instituições intervenientes – o Parlamento Europeu, o Conselho Europeu e a Comissão Europeia – a iniciativa legislativa cabe à Comissão, que é portanto quem pode propor as directivas, não tendo no entanto poder de decisão sobre elas, cabendo este poder às outras duas instituições em conjunto, no que se chama o processo de co-decisão. Após aprovação no plenário do PE em primeira leitura, a directiva é comunicada ao Conselho onde os chefes de Estado e de governo decidirão por maioria qualificada. Se o texto aí aprovado for semelhante ao do PE, passa então a constituir uma lei europeia. Caso contrário, o processo recomeçará.

Esta proposta de directiva foi apresentada pela Comissão num documento datado de 13 de Janeiro de 2004, já quase com dois anos. O seu autor foi Frits Bolkestein, o comissário que tinha o pelouro do Mercado Interno, uma figura importante do mundo dos negócios e da política, ex-director da Shell, ex-ministro holandês do Comércio e, em seguida, da Defesa, além de presidente da Internacional Liberal. Um curriculum que fala por si. Estamos perante um documento chave da institucionalização do liberalismo económico na sua versão mais dura, e outra coisa não seria de esperar de um homem como Bolkestein.

Mas uma questão que não tem estado suficientemente presente no debate em curso, é que este documento só é uma proposta de directiva porque foi aprovado pela Comissão, a qual era presidida pelo socialista Romano Prodi. Poderia, portanto, com propriedade, ser chamada também de “directiva Prodi”. E não consta que o comissário socialista António Vitorino tenha votado contra.

Sendo a mais polémica, liberal e anti-social directiva em discussão na UE, ela é contudo o resultado de um consenso forte do bloco central.

A reunião do Conselho de 11 de Março de 2004, em que o governo português esteve representado por Carlos Tavares (Min. da Economia) e Maria da Graça Carvalho (Min. Ensino Sup. e Invest. Cient.), sublinhou a importância da directiva proposta e decidiu atribuir-lhe uma prioridade elevada com vista a realizar “rápidos progressos”.

2. Directiva Bolkestein: filha da Estratégia de Lisboa, neta do AGCS

Já em artigo recente, no número anterior da Comuna, sublinhámos a importância da Estratégia de Lisboa como âncora da política europeia e a consequente necessidade da sua crítica para podemos atacar os fundamentos do projecto neoliberal europeu. Lembremos que a Estratégia de Lisboa é assim chamada porque foi aprovada na reunião do Conselho realizada em Março de 2000, em Lisboa, quando Portugal exercia o cargo rotativo da presidência do Conselho Europeu. Tem sido apresentada como o principal contributo do governo socialista português e de António Guterres para a grande política europeia. E é, sem dúvida.

A Estratégia de Lisboa não tem sido alvo de ataques tão claros e frontais como acontece com a directiva Bolkestein, que tem a mais enérgica rejeição por parte do movimento sindical e social europeu, mesmo daquele onde a influência da social-democracia e da Internacional Socialista é dominante. É, porém, importante perceber que a directiva Bolkestein decorre directamente da Estratégia de Lisboa e que a sua aprovação é considerada mesmo como uma condição essencial para o êxito daquela estratégia.
Para que não se pense que esta é uma afirmação forçada ou gratuita, visando comprometer os socialistas com as teses ultraliberais do liberalíssimo e detestado Bolkestein, nada melhor do que remeter para os próprios documentos oficiais.

O texto da directiva Bolkestein começa precisamente assim:

“ 1. A presente proposta de directiva inscreve-se no processo de reformas económicas lançado por Conselho Europeu de Lisboa para transformar a Europa, até 2010, no «espaço económico mais dinâmico e competitivo do mundo». Com efeito, a realização deste objectivo torna indispensável a criação de um verdadeiro mercado interno para os serviços. O considerável potencial de crescimento e de criação de empregos no domínio dos serviços não pôde ser concretizado até ao momento devido aos numerosos obstáculos que obstruem o desenvolvimento das actividades de serviços no mercado interno. Esta proposta faz parte da estratégia adoptada pela Comissão para suprimir os referidos obstáculos e dá seguimento ao relatório sobre a situação do mercado interno dos serviços que revelou a sua amplitude e gravidade.

2. O objectivo da proposta de directiva é estabelecer um quadro jurídico que suprima os obstáculos à liberdade de estabelecimento dos prestadores de serviços e à livre circulação dos serviços entre os Estados-Membros e que garanta aos prestadores, bem como aos destinatários dos serviços, a segurança jurídica necessária para o exercício efectivo destas duas liberdades fundamentais do Tratado. A proposta cobre uma larga variedade de actividades económicas de serviços, com algumas excepções como os serviços financeiros, e só se aplica aos prestadores estabelecidos num Estado-Membro.”

A filiação da directiva está pois estabelecida e documentada. E é talvez essa filiação que tem dificultado a construção de uma frente política clara e alargada contra ela, como pareceria a alguns ser lógico e esperável, atendendo à amplitude da frente social e sindical da contestação.

Mas para além desta origem europeia, a directiva filia-se mais globalmente nas disposições da Organização Mundial do Comércio – OMC, decididas na ronda do Uruguai, concretamente no Acordo Geral sobre o Comércio dos Serviços – AGCS, também conhecido pela sua sigla inglesa GATS – General Agreement on Trade in Services.
Na capítulo IV deste Acordo, intitulado "Progressiva liberalização", determina-se, no artigo XIX, que os signatários começarão, no prazo máximo de cinco anos, "sucessivas rondas de negociações com vista a atingir um nível mais elevado de liberalização" e que "essas negociações serão dirigidas para a redução ou eliminação das medidas que tenham um efeito adverso para o comércio de serviços, como meio para conseguir um eficaz acesso aos mercados".

Este acordo está datado de 1994, e o prazo limite de cinco anos que era então dado para o início das negociações de liberalização corresponde ao fim de 1999. Elas foram efectivamente lançadas em Janeiro de 2000 com enormes pressões para a liberalização do acesso ao mercado de serviços. Logo a seguir, em Março de 2000, era aprovada a Estratégia de Lisboa. E no âmbito desta estratégia é apresentada a Directiva europeia sobre os Serviços no Mercado Interno, dita Bolkestein. A árvore genealógica não tem segredos. O que está em curso tem um plano de longo prazo e objectivos bem claros.

3. Que serviços?

O comércio livre de mercadorias, acordado no GATT, assenta em princípios relativamente simples de redução ou anulação de tarifas aduaneiras e restrições às importações. Mas o comércio de serviços, de que trata o GATS ou AGCS, é bem mais complicado. Pode assumir basicamente quatro formas: um fornecimento transfronteiriço (como acontece quando enviamos uma carta ou um fax para outro país), um consumo realizado no estrangeiro (como fazemos quando, como turistas, utilizamos um hotel ou um restaurante), uma presença comercial empregando pessoal local (como acontece com as lojas de cadeias estrangeiras presentes no nosso país que empregam portugueses) ou uma prestação noutro país com deslocação de pessoas (sejam técnicos, consultores ou operários da construção).

Por vezes tem-se uma noção um pouco restritiva do âmbito das actividades económicas que correspondem à designação "serviços", já que tradicionalmente se mencionavam separadamente os sectores da indústria, do comércio e dos serviços. Mas na definição do AGCS ou da directiva Bolkestein, "serviços" são muito mais do que resulta dessa divisão, já que incluem um vastíssimo sector onde cabem muitas actividades industriais (como a indústria de construção civil), toda a actividade comercial e ainda a os serviços privados e a maior parte dos serviços públicos.

Na directiva Bolkestein, serviços são definidos como “toda e qualquer prestação através da qual um prestador participe na vida económica, independentemente do seu estatuto jurídico, das sua finalidades e do domínio de acção em causa. Assim, são abrangidos: os serviços aos consumidores, os serviços às empresas ou os serviços fornecidos a ambos”. No seu conjunto, os serviços assim considerados, geram quase 70% dos PNB e do emprego da União Europeia.

No definição incluída no artigo I.3 do AGCS, estão compreendidos “todos os serviços de todos os sectores com excepção dos serviços fornecidos no exercício do poder governamental, entendidos estes como os que não são fornecidos numa base comercial nem em regime de concorrência”. Para a implementação do AGCS, a UE e os EUA têm feito enormes pressões no sentido de reduzir estas excepções previstas. Compreende-se que a abertura de um qualquer serviço público à concorrência, por limitada que seja, tem como efeito imediato, em consequência deste artigo, que o sector em causa fica abrangido pelo AGCS e sob a alçada da OMC.

Eis apenas um exemplo do que isto significa: a União Europeia requereu a países como o Botswana, o Egipto, as Honduras ou a Tunísia, o fim do monopólio de gestão pública do sector da água, com vista a integrá-lo no conceito de serviço abrangido pelo AGCS para que as grandes empresas europeias do sector possam começar a vender água aos habitantes desses países (uma água que já é deles, já que não se prevê a construção de nenhum pipeline para transportar água de França ou de Inglaterra para o Botswana ou para as Honduras).

4. O complemento necessário das deslocalizações

O conceito de serviços exposto acima, correspondendo a muito diferentes actividades, inclui no entanto uma característica comum, que é a chave do problema: são actividades que são exercidas necessariamente junto do consumidor.

O que não acontece com a indústria. O capital tem utilizado o método da deslocalização das suas empresas industriais, indo atrás de mão-de-obra mais barata, tornando as empresas mais competitivas e aumentando a rentabilidade dos investimentos. Enquanto houver grandes desigualdades de uns países para os outros, a deslocalização resulta, é rentável e irá continuar.

Mas há sectores de actividade que, pelas suas características intrínsecas, não podem ser deslocalizados. Por exemplo, a construção civil tem de ser feita no local, pelo menos a grande maioria das tarefas de que se compõe. O abastecimento de água e de electricidade tem de ser levado até à casa das pessoas e das empresas. A hotelaria e a restauração são indeslocalizáveis, são serviços que têm de ser prestados onde estão os clientes. Assim como o ensino, a saúde, os transportes, etc.

Mas isto não significa que, por não poderem deslocalizar a prestação do serviço, os empresários destes sectores desistam da busca de mão-de-obra barata. Uma das soluções clássicas é a utilização de mão-de-obra de imigração, sobretudo se for possível manter os trabalhadores imigrantes sem acesso completo aos direitos laborais e sociais, trabalhando abaixo dos níveis salariais dos outros trabalhadores do país de acolhimento. Mas há outra possibilidade, é aquela que é prevista nesta directiva: os trabalhadores imigram mas não como trabalhadores à procura de um emprego no país de destino, viajam como empregados deslocados das empresas sedeadas nos países de origem, vinculados portanto às condições contratuais que aí vigoram. E como variante desta solução, é possível até dispensar a deslocação de pessoal e recrutar trabalhadores directamente no país de destino ao mesmo preço e com as mesmas condições que teriam os imigrantes, desde que o contrato seja feito através de empresa estabelecida no chamado país de origem.

O empresário da era Bolkestein terá, pois, apenas que ou deslocalizar a sede da sua empresa para os países em que as condições salariais, fiscais e de exigência ambiental constituam um custo menor, ou tão somente comprar uma empresa aí existente ou constituir uma nova, e depois prestar o serviço onde for preciso, onde for mais bem pago. É o dumping social.

Este método dá os mesmos resultados do que a utilização de imigrantes a baixo preço, tantas vezes ilegais, mas é muito mais limpo e mais próprio de europeus civilizados. Agora, os trabalhadores poderão estar completamente legais a ganhar a mesma miséria, com a vantagem adicional de que não haverá qualquer vínculo do trabalhador ao país mais rico onde o serviço é prestado, podendo ser recambiados sem problemas logo que não sejam necessários. As leis de imigração, sejam quais forem, não se aplicam. Em caso de os trabalhadores ficarem desempregados, serão desempregados do país de origem da empresa, onde haverá eventualmente (diríamos: provavelmente) um custo baixo ou nulo com o apoio social.

Este sistema tem também a vantagem, para o capital, de estabelecer novos padrões europeus de preço e regalias para a contratação de mão-de-obra, com influência nas negociações das próprias empresas com sede nos países mais desenvolvidos, fazendo enorme pressão para um nivelamento pelos valores mais baixos da União, sob pena de perda de competitividade face às empresas concorrentes que já estejam bolkesteinizadas.

5. A alma do processo tem um nome: Princípio do País de Origem – PPO

O voto de hoje da comissão IMCO retirou formalmente a designação do PPO, altamente impopular em França e nos meios sindicais europeus, mas o PPE e os Liberais conseguiram que os seus pressupostos continuassem subjacentes à directiva. Mas, para que não haja qualquer dúvida ou ambiguidade sobre este princípio, que é essencial para todo o processo, recorramos à definição que é apresentada no texto oficial da directiva Bolkestein:

“ A proposta de directiva baseia-se numa combinação de técnicas de enquadramento das actividades de serviços, designadamente:

O princípio do país de origem por força do qual o prestador só está sujeito à lei do país em que se encontra estabelecido e os Estados-Membros não devem restringir os serviços fornecidos por um prestador estabelecido noutro Estado-Membro. Este princípio permite ao prestador fornecer um serviço num ou em vários outros Estados-Membros sem estar sujeito à respectiva regulamentação. Este princípio permite também responsabilizar o Estado-Membro de origem, obrigando-o a assegurar um controlo eficaz dos prestadores estabelecidos no seu território, ainda que estes forneçam serviços noutros Estados-Membros.
Além disso, a preocupação de limitar as interferências em relação às particularidades dos regimes nacionais justificou algumas escolhas legislativas:

A proposta não efectua uma harmonização pormenorizada e sistemática de todas as regras nacionais aplicáveis aos serviços, limitando-se às questões essenciais cuja coordenação é estritamente necessária para assegurar a liberdade de estabelecimento e a livre circulação dos serviços;

O recurso ao princípio do país de origem permite a realização do objectivo que consiste em assegurar a livre circulação dos serviços, permitindo simultaneamente a coexistência pluralista dos regimes jurídicos dos Estados-Membros, com as suas especificidades, não podendo estas últimas ser utilizadas para restringir os serviços de um prestador estabelecido noutro Estado-Membro.

[...]
Com vista a criar um verdadeiro mercado interno dos serviços, é necessário suprimir as restrições à liberdade de estabelecimento e à livre circulação dos serviços que ainda estejam previstas pelas legislações de alguns Estados-Membros e que sejam contrárias aos artigos 43.º e 49.º do Tratado. As restrições proibidas afectam, nomeadamente, o mercado interno dos serviços e devem ser desmanteladas de maneira sistemática o mais depressa possível.”

Citamos o texto da directiva, porque é difícil ser mais claro do que os seus redactores. Prestar um serviço num país sem estar sujeito à respectiva regulamentação; não-harmonização das regras; coexistência pluralista dos regimes jurídicos (sem estas diferenças entre os países o negócio não compensava); atribuir o controlo ao país de origem (imagine-se o controlo da Estónia de uma empresa com sede no seu país mas a prestar serviços em Chipre ou nos Açores, ou vice-versa - estamos portanto basicamente livres de controlos sérios); desmantelar de maneira sistemática e o mais depressa possível as restrições que possam advir dos regimes jurídicos nacionais: tudo está preto no branco e não deixa margens para dúvidas sobre as verdadeiras intenções, honra seja feita ao documento.

A estratégia será portanto: a indústria deslocaliza a produção, os serviços deslocalizam a sede.

Nesta nova fase que vive a União, assume-se claramente uma viragem de rumo. Após uma época em que a harmonização era um objectivo assumido, quase considerado um princípio fundador no projecto europeísta de Delors, trata-se agora, sobretudo depois do alargamento a Leste e das tentativas de redução dos montantes dos orçamentos comunitários, de aceitar e manter as diferenças e encará-las sobretudo como uma oportunidade de negócio.

Esta directiva e o seu princípio do país de origem cumprem no vastíssimo sector de serviços o mesmo papel que as deslocalizações cumprem no sector industrial; são o seu complemento, e vão ser um complemento tão mais importante quanto o peso relativo dos serviços for continuando a aumentar nas nossas sociedades.

Este inestimável serviço prestado pela Comissão Europeia às empresas privadas deve ser por ela considerado tão importante que a levou mesmo a entrar num processo de legalidade questionável: pretender com uma simples directiva modificar o estabelecido no Tratado que institui a Comunidade Europeia, que está em vigor, e que estabelece no seu capítulo 3, sobre os serviços, artigo 50º, que “o prestador de serviços pode, para a execução da prestação, exercer, a título temporário, a sua actividade no Estado onde a prestação é realizada, nas mesmas condições que esse Estado impõe aos seus nacionais.” Poderemos assim vir a assistir a uma interessante guerra jurídica nos tribunais europeus mas, apesar da sua relevância, não devemos alimentar grandes esperanças de bloqueio da directiva por essa via.

6. Pontos fortes e fracos da luta contra a directiva

O movimento popular e muito especialmente o movimento sindical nos países da parte mais central e ocidental da UE estão bastante mobilizados e unidos contra a directiva Bolkestein. Nas grandes manifestações europeias de 2005, todos se manifestavam contra a directiva, tanto os partidários do Não, como os partidários do Sim ao Tratado Constitucional. Esta unidade é um ponto forte, com certeza. Porém, contrariamente ao que aconteceu com o Tratado, a directiva não será sujeita a referendo, pelo que este vasto sentimento de rejeição não terá tradução imediata com efeito deliberativo.

A deliberação está, pois, nas mãos do Parlamento Europeu e do Conselho. Não se pode dizer que esteja em muito boas mãos, mas a esperança de rejeição ainda existe.

O PE tem uma maioria de direita, e uma imensa maioria oriunda do mesmo bloco central que promoveu e apoiou a directiva desde o início. No entanto, muitas contradições existem, nomeadamente no que se refere ao âmbito de aplicação, isto é, à definição dos sectores que se considerará excluídos da directiva, às competências de controlo e verificação, e mesmo em relação à aplicação do PPO. Mas, subtilezas e emendas à parte (na Comissão parlamentar foram apresentadas mais de mil emendas e o relatório final é um documento com 355 páginas), a composição do PE não permite alimentar grandes esperanças desta parte. No voto realizado hoje em Comissão, a emenda que propunha a rejeição global da directiva foi derrotada por 7 votos contra 33 e no voto final, a directiva já emendada foi aprovada com 25 votos a favor, 10 contra e 5 abstenções.

O outro titular do poder de decisão é o Conselho. E aí a situação é bem mais instável. Embora à partida a directiva tivesse merecido apoio unânime (como referimos no fim ponto 1), os últimos tempos trouxeram grande desgaste a essa unidade. Chirac, apoiante convicto no início, tornou-se feroz crítico quando compreendeu que a rejeição do Tratado Constitucional em França se devia em parte a que as pessoas entendiam (muito justamente) estes dois documentos como fazendo parte do mesmo projecto de uma Europa anti-social. Os patéticos apelos feitos durante a campanha para que os franceses dissociassem a directiva do Tratado não resultaram e hoje Chirac culpa o neoliberalismo da Comissão e directivas como esta pela derrota no referendo. O chanceler austríaco Wolfgang Schüssel, homem de direita, afirmou em 27 de Outubro, no último Conselho Europeu informal promovido por Blair em Hampton Court, que a Áustria poderia não votar a favor. O liberal primeiro-ministro da Dinamarca poderá também abandonar o lado dos apoiantes, sentimento em que é razoavelmente acompanhado nos outros países do Norte. Enfim, nos países com nível mais elevado de vida, em que se prevê que haja uma entrada massiva de prestação de serviços oriunda dos países com salários mais baixos, o mal estar geral entre a população cresce e tem reflexos nos governantes, sobretudo nos que terão eleições mais próximas. Existe pois a hipótese de ser precisamente no Conselho que a directiva encrava. Não talvez pelos melhores motivos, mas por mero eleitoralismo de circunstância.

Desta situação decorre uma estratégia concreta de luta: é preciso promover sobretudo grandes mobilizações e movimentos de opinião, acompanhados onde possível por acções nos Parlamentos nacionais, fazendo sentir aos governos que o seu voto favorável à directiva lhes poderá ser fatal em termos de apoio eleitoral. Foi esta força que em França fez mudar Chirac e que vai semeando hesitações noutros governantes. Este é um ponto forte. Toda a pressão é necessária neste momento. É preciso exigir explicações sobre a posição do PS em todo o processo, tanto a nível do governo Sócrates como dos deputados europeus e nacionais.

A rejeição da directiva Bolkestein seria uma importantíssima vitória para o movimento popular, sobretudo porque se segue à vitória contra o Tratado. O ânimo que estas duas vitórias poderiam trazer aos trabalhadores teria consequências animadoramente imprevisíveis.

Porém, e há sempre o outro lado da questão, creio que os verdadeiros dirigentes do projecto de liberalização da Europa estão preparados para esta eventual derrota.

São os mesmos que já fizeram marcha-atrás na questão da Constituição. A sua estratégia assenta no reconhecimento de que avançaram demasiado depressa e sobretudo que avançaram para campos demasiado expostos à crítica e ao voto popular. O seu projecto não precisa disso, muito pelo contrário, vive melhor com uma certa distância e opacidade, com o sentimento de que as questões europeias são demasiado complexas para serem decididas por uma população incapaz de compreender os meandros do que está em causa. Como se constata na prática do dia-a-dia e no sentido das decisões que continuam a ser tomadas, a União não deixou de seguir os caminhos do neoliberalismo subjacentes à Constituição pelo facto de não haver Constituição.

Da mesma forma, o aproveitamento das oportunidades abertas pela existência na UE a 25 de países com salários baixos e condições sociais, fiscais e ambientais pouco exigentes, não deixará de ser aproveitado, mesmo que a directiva Bolkestein sofra um revés. O processo já está em curso, aliás. Ainda este ano, no mês de Maio, foi levantada a questão do trabalho em França de uma centena de trabalhadores do nosso país com salários baixos e bem portugueses, porque vinculados pelo contrato de trabalho do país de origem a uma empresa de direito português prestando serviços em França para a France Telecom. Também na Suécia, o caso Waxholm, de uma empresa da Letónia que pretendia utilizar os seus contratos de trabalho e os seus salários baixos numa obra pública sueca, o que foi boicotado pelos sindicatos suecos para grande irritação da Comissão Europeia, mostra que os empresários não estão parados à espera que termine o longo e incerto processo legislativo da Bolkestein (ver explicação detalhada no texto sobre o caso Waxholm publicado neste site).

Um outro ponto fraco desta luta reside no apoio que os objectivos da directiva podem obter junto dos trabalhadores dos países para onde será feita a deslocalização das empresas de serviços os quais, apesar de manterem baixos salários, verão certamente aumentar as suas possibilidades de emprego, podendo ser jogados contra os trabalhadores dos países mais ricos. O alargamento da solidariedade e a entrada na luta dos trabalhadores do leste da UE é absolutamente essencial.

Se não conseguirmos que a directiva Bolkestein seja rejeitada, estaremos perante uma situação muito mais difícil para as condições sociais e a vida de todos os trabalhadores na Europa, embora haja ainda muitas frentes de combate que podem ser travadas país a país com as legislações nacionais e as excepções à aplicação. Se conseguirmos mandar esta directiva para o mesmo balde do lixo onde está o Tratado Constitucional, o movimento dos trabalhadores ganhará uma importante batalha, mas não poderá descansar sobre os louros da vitória, porque o dumping social expulso pela porta voltará a entrar por uma qualquer obscura janela dos múltiplos instrumentos legislativos e da jurisprudência comunitária. Mas isso poderá ser tema para um outro artigo.

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